eu não estou à deriva na navalha
Renne Gladman
🎧 Alice Coltrane - Turiya And Ramakrishna
Inicio este projeto como quem grifa um livro novo pela primeira vez. Leio, anoto e converso com o texto, escrevendo nas bordas da página. A proposta aqui é essa: pensar as narrativas que nos constroem e desorganizam. Espero que gere conversas, não só com o texto, mas entre nós.
O nome Notas à Margem nasceu da minha relação com a leitura e com a pesquisa, mas também de uma tentativa de dar forma ao que venho elaborando há algum tempo. Foram muitos cadernos, alguns separados por temas ou com objetivos específicos, outros usados de forma aleatória. Alguns livros lidos, grifados, com as bordas levemente dobras e outros que foram abandonados. Recentemente, iniciei a leitura do tese-livro Corpo, escrita e fractal, de Tatianne Dantas. Essa imagem da margem retornou e, por isso, fui revisitar algumas leituras antigas.

Em Teoria feminista: da margem ao centro, bell hooks nos apresenta a margem como novo ponto de vista. Para nós, hoje, talvez esse discurso de 1984 possa soar óbvio, mas, ao pensar o contexto da época e a forma como o movimento feminista não contemplou pautas de raça, o que ela conceituou foi de suma importância. Foi importante pra mim também, pois me ajudou a nomear uma sensação de desajuste que sinto desde criança. Viver à margem, transitar pelo centro, mas sem fazer parte dele.
É o que parece motivar Christina Sharpe, em Notas ordinárias, ao colecionar notas necessárias sobre a existência negra. E assim ela nos conduz à beleza e à possibilidade para nós, pessoas negras. Mobilizando aquilo que encontramos em Saidiya Hartman e sua beleza terrível, e que sustenta a escrita de Gwendolyn Brooks em Maud Martha.
Ao pensar a margem como lugar de fala e de reconstrução, parece que algo se revela. Não como uma forma de romantização a violência, mas como forma de enxergar par além do lugar social que nos é imposto. lubi prates já versou “meu corpo é meu lugar de fala”. E é com essas mulheres que dialogo e que me ensinam a importância da escrita, da teoria e da poesia.
Com Katherine McKittrick, em Dear Science, passei a pensar nas notas de rodapé e nas políticas de citação como práticas críticas. Entendi, dessa forma, que ao falar e evocar os autores com quem diálogo e me constituem, não era um ato pedante mas sim uma forma de “organizar, reorganizar e coletar ideias fora de nós mesmos são processos que tornam as ideias nossas (…)”. Espiralizando de volta a Tatianne Dantas, reencontrei em sua tese-livro a margem como lugar estratégico, entre a escuta, o deslocamento e a criação.
Talvez esse não seja um texto de começos, pois a escuta precedeu a escrita. Mas uma tentativa de dar um suporte ao corpo que tem sido escrito e desfeito em minhas leituras. Nesse sentido, me identifico com a percepção Kyung-ha, personagem de Sem Despedidas, de Han Kang:
"[...] o registro dos meus últimos quatro anos seria como um caracol, saindo da concha e avançando em cima de uma lâmina. Um corpo que deseja viver. Um corpo que é apunhalado e cortado. Um corpo que rejeita, abraça e agarra. Um corpo que se ajoelha. Um corpo que implora. Um corpo que se esvai, sem parar, em sangue, pus ou lágrimas.” (p. 11 e 12)
As citações escolhidas me fazem retomar uma antiga obsessão pelo abismo e de como essas imagens cortantes e espiralares1 têm conduzido meu processo de nomeação, autodeterminação e pesquisa. Entre citações, notas de rodapé, referências, bibliografias, textos, narrativas, parênteses, fontes e páginas. Espero que seja nesse modo que o Notas à margem caminhe, desejo que juntas, eu e vocês
Até a próxima nota,
carolina ferreira
[no modo espiralar]
recentemente voltei a obra, a vida e ao atelier de Georgia O'Keeffe, principalmente aos trabalhos espiralares, a série de conchas e a olhar fotos dos trabalhos abstratos. imagino sua vida, a presença do deserto, como era viver e criar ali. tem algo de contemplativo, de silencioso em sua produção que me causa espanto. faz um ano que tenho vivido com a depressão, tem sido um espanto e em sua produção parece que encontro algum consolo. como se nas voltas das conchas, eu sentisse que a vida se movimenta. uma coisa é algo agora e depois pode não ser mais, mesmo que aquilo que passou possa seguir me constituindo.
Obrigada por ter me apresentado esse livro da Dantas; também me inspirou a escrever aqui!!! Adorei esse novo projeto. Você é brilhante!
amei ❤️